Entre Fanon e Freire: São Tomé escolhe seus ancestrais

Saiba como São Tomé transformou sua história valorizando fé, arte e memória ancestral, em uma resistência silenciosa além da educação e da revolução.

TERRITÓRIO E IDENTIDADE QUILOMBOLA

7/1/20255 min read

Entre Fanon e Freire, São Tomé Escolheu os Ancestrais

Nem toda revolução levanta bandeiras. Algumas se manifestam no corpo que dança, na fé que resiste em silêncio, na memória que se move entre as gerações sem pedir licença. Enquanto Frantz Fanon pensava a libertação como ruptura e Paulo Freire como consciência crítica através da educação, a Comunidade Quilombola de São Tomé, em Campo Formoso (Bahia), trilhou outro caminho: um processo de transformação sustentado pela ancestralidade, pela arte e pela espiritualidade.

Fanon, Freire e os caminhos clássicos da liberdade

Frantz Fanon: a revolução como ruptura

Filósofo e psiquiatra nascido na Martinica, Fanon acreditava que a verdadeira libertação dos povos colonizados só poderia ocorrer por meio de uma ruptura radical, muitas vezes armada, com o sistema opressor. Para ele, a descolonização não era um ato simbólico. Era uma reorganização total da realidade. Uma revolução que precisava nascer do enfrentamento direto com os colonizadores e suas estruturas de dominação.

Fanon defendia que a violência da colonização exigia uma resposta igualmente contundente, um movimento de negação e reconstrução que devolvesse aos oprimidos o controle sobre seu próprio destino.

Paulo Freire: a educação como prática de liberdade

No Brasil, Paulo Freire propôs um caminho distinto. Seu método não usava armas, mas palavras. Não buscava a destruição imediata do opressor, mas a reconstrução da consciência do oprimido. Para Freire, a educação libertadora nascia do diálogo, da escuta e do reconhecimento do saber popular.

O povo, alfabetizado com suas próprias histórias e vivências, ganhava voz, nome e lugar no mundo. Era pela palavra e pela leitura crítica da realidade que a liberdade se fazia possível.

A resposta quilombola de São Tomé

Em São Tomé, a transformação não veio com grito, veio com permanência

Na Comunidade Quilombola de São Tomé, não houve revolução armada nem pedagogia sistematizada. Não houve ruptura, tampouco projeto educativo formal. O que houve foi permanência. Resistência cotidiana. Memória encarnada no corpo, no gesto, na música e na fé.

Lá, a transformação não aconteceu de forma planejada ou teorizada. Ela veio pela transmissão silenciosa dos costumes, das crenças, das práticas culturais. Veio pela continuidade daquilo que os antepassados ensinaram com os pés descalços no chão de terra batida.

A memória muscular como pedagogia invisível

Se Paulo Freire falava da pedagogia da palavra, São Tomé respondeu com a pedagogia do corpo. A criança aprende a dançar o reisado não por teoria, mas por imitação. Aprende a respeitar os mais velhos não por cartilha, mas por vivência. Aprende a cuidar da terra, a rezar, a ouvir o som do tambor e a costurar seus próprios símbolos identitários a partir da prática diária.

É a memória muscular que conduz o aprendizado em São Tomé, aquela que passa de avó para neta, de dançador para aprendiz, de rezadeira para criança que observa. O corpo torna-se livro. O rito torna-se sala de aula. O território torna-se biblioteca.

Religião e arte como tecnologias de resistência

A fé que une o visível e o invisível

A religião em São Tomé não é apenas uma expressão de crença, ela é um modo de existir no mundo. Rezadeiras, benzedeiras, terreiros e altares convivem com o catolicismo popular, criando um universo sincrético onde a fé protege, guia e reafirma a identidade.

Essa espiritualidade é herança africana e ferramenta de resistência. Ela guarda segredos, histórias e saberes que escaparam do apagamento colonial. Não é à toa que, em meio a uma estrutura social que ainda nega os valores da cultura negra, a fé em São Tomé se mantém como raiz viva.

O corpo que dança também fala

O grupo das Ciganinhas, o Reisado e outras expressões culturais da comunidade não são apenas manifestações folclóricas, são formas de resistência. Cada passo dançado, cada música entoada, cada figurino costurado é um grito suave de permanência.

A arte em São Tomé é revolucionária porque não aceita o esquecimento. Ela ensina sem palavras, fortalece sem violência, educa sem escola. É a arte como política do cuidado, como memória em movimento.

A tradição como linguagem de liberdade

Em São Tomé, a revolução não precisou de rupturas visíveis. Precisou de continuidade. Precisou de mãos firmes que segurassem a herança. De vozes que mantivessem os cantos. De corpos que guardassem os saberes. A tradição virou linguagem de liberdade.

Ao invés de teorizar, a comunidade viveu. E ao viver, resistiu. Ao resistir, transformou-se. Uma transformação que talvez não entre nos livros de história com pompa, mas que pulsa em cada ritual, em cada festa, em cada oração feita ao entardecer.

Conclusão: São Tomé é revolução em silêncio

Enquanto Fanon gritava pela revolução e Freire pela alfabetização crítica, São Tomé respondeu com silêncio firme e corpo presente. Transformou-se pela fé, pela cultura, pela memória do gesto. É uma revolução que não se noticia, mas se sente.

São Tomé nos ensina que nem toda libertação vem com rompimento. Algumas vêm com continuidade. Com raízes. Com permanência. E talvez seja essa a forma mais profunda de resistência: não desaparecer.

Entre a palavra e a revolta, São Tomé escolheu a memória. Uma revolução feita de silêncio, presença e eternidade. Leia, reflita e compartilhe.