
Letramento Quilombola: Por que Alfabetizar com Palavras que Fazem Parte da Comunidade?
A alfabetização tradicional ignora o contexto das comunidades quilombolas ao usar palavras que não fazem parte da sua realidade. Este artigo propõe um letramento com identidade, valorizando a cultura local, os saberes da oralidade e o vocabulário do cotidiano. Uma leitura necessária para quem acredita em uma educação transformadora, afetiva e antirracista.
EDUCAÇÃO E MUSEU VIRTUAL
6/18/20254 min read
Letramento Quilombola: Por que Alfabetizar com Palavras que Fazem Parte da Comunidade?
A alfabetização é muito mais do que ensinar a juntar letras e formar sílabas. É, sobretudo, um processo de compreensão do mundo através da linguagem. Para as comunidades quilombolas, esse processo ganha contornos específicos: é preciso que a leitura da palavra venha acompanhada da leitura da realidade, da cultura e da identidade local.
Mas como alfabetizar quando os materiais didáticos falam de objetos, contextos e palavras que não fazem parte da vida da comunidade? Como criar sentido quando o mundo apresentado no livro é distante, urbano e branco?
Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre a necessidade de um letramento contextualizado, que respeite e valorize os saberes quilombolas, os modos de falar, os nomes, os gestos e as memórias coletivas.
O que é letramento e por que ele importa?
Alfabetizar não é só ensinar a ler
Letramento é um conceito que vai além da decodificação das palavras. Trata-se da capacidade de usar a leitura e a escrita para se comunicar com sentido, de acordo com os contextos sociais e culturais do sujeito.
Enquanto a alfabetização ensina o “como”, o letramento ensina o “para quê”, e é nesse ponto que a comunidade deve entrar como protagonista.
A leitura do mundo antes da leitura da palavra
Como dizia Paulo Freire: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra.” Não se pode falar de letramento sem considerar a realidade em que a criança vive. Quando os materiais escolares apresentam palavras como “esqui”, “neve”, “shopping” ou “navio de cruzeiro”, ignoram totalmente o universo simbólico e material de uma criança quilombola do semiárido baiano, por exemplo.
Desafios da alfabetização tradicional
Palavras que não fazem parte da comunidade
Em muitas cartilhas, as primeiras palavras ensinadas são totalmente alheias à vida cotidiana das crianças. Isso gera desinteresse, dificuldade de compreensão e até um sentimento de inadequação: “se isso é aprender, e eu não vivo nada disso, então eu sou burro?”.
Imagine uma criança que nunca viu neve ser obrigada a entender o som da letra “N” através da palavra “neve”. Por que não ensinar com “nambu”, “ninho”, “nambuíra”, “nambu de terreiro”? Ou qualquer outro termo que faça parte da sua vivência e do seu vocabulário familiar?
A exclusão simbólica da cultura local
Ao não valorizar a linguagem da comunidade, a escola reproduz o racismo linguístico e a lógica colonial. Ela impõe uma norma e desqualifica o modo de falar, escrever e viver das crianças negras, rurais, quilombolas. Isso fragiliza a autoestima e rompe com o sentido educativo da escola como um espaço de acolhimento.
Letramento com identidade quilombola
Usar nomes, lugares e saberes da comunidade
Uma proposta de letramento quilombola deve partir de nomes conhecidos, alimentos locais, histórias contadas pelos mais velhos, festas tradicionais, bichos da região, utensílios da casa, plantas do quintal. Ao ensinar com o que já é familiar, o aprendizado se torna significativo, afetivo e respeitoso.
Exemplos:
Em vez de "A de avião", que tal "A de arueira" (planta típica do sertão)?
Em vez de "B de bola", por que não "B de batuque", "B de buriti", ou "B de Benedita" (nome de uma matriarca local)?
Valorização da oralidade e da memória
A oralidade é central na cultura quilombola. O letramento precisa incorporar as narrativas orais, os provérbios, as cantigas, os causos, as chulas. Isso reforça a continuidade dos saberes e coloca a cultura local no centro do processo educativo.
Experiências e soluções possíveis
Projetos de escolas quilombolas
Em diversas comunidades, já existem práticas de educação quilombola com letramento contextualizado. Professores criam cartilhas com palavras da própria comunidade, alunos escrevem os nomes de seus familiares, e atividades são feitas com base nas histórias contadas pelos avós.
Essas experiências mostram que é possível ensinar a ler e escrever com afeto, pertencimento e consciência de identidade.
Como criar materiais pedagógicos com a comunidade
Reunir palavras e expressões usadas no cotidiano;
Criar pequenos livros com fotos de pessoas e lugares locais;
Montar abecedários com frutas, bichos, utensílios e símbolos do quilombo;
Incentivar crianças e adultos a escrever juntos suas histórias e memórias.
Conclusão
O letramento quilombola é um ato de resistência. Alfabetizar com palavras que fazem parte da vida das crianças é também ensinar que elas importam, que sua fala tem valor, que seu território é legítimo, que sua cultura é saber.
Ler e escrever com e sobre a comunidade é o primeiro passo para uma educação que cura, que fortalece e que transforma.
Você conhece palavras ou expressões que só existem na sua comunidade? Deixe nos comentários e ajude a construir um letramento com identidade!
Artigos Relacionados
Explore a história da comunidade quilombola de São Tomé
CONTATO
© 2025. Todos os direitos reservados.